Considerações sobre o Divino
Nuno Ramos
Entre os jogadores brasileiros excepcionais, talvez nenhum tenha construído um destino tão estranho quanto Ademir da Guia.
Desde sua figura quase albina, como que saída do negativo de um filme, flutuando sem peso pelo campo, passando pela estranha desritmia de seu jogo e chegando ao tom demasiado sereno, demasiado maduro de suas declarações, tudo nele parece compor uma figura solitária e invertida, o reverso da potência, do aqui e do agora próprios de seu meio, de sua época e de seu ofício.
Aquele de repente de uma corrente pra frente, aqueles 90 milhões em ação parecem congelar sob o seu olhar distante. Ademir representou, ainda no auge da grandeza do nosso futebol, um intervalo estranho, interrogativo, algo geológico, um deslocamento em relação a nossas certezas e costumes. Neste momento confuso e sem cara do nosso futebol, é a essa espécie de linhagem evolutiva interrompida, ao mesmo tempo síntese e produto exilado de nosso jogo, que o livro "A Vida e a Arte de Ademir da Guia", construído basicamente a partir de longos testemunhos, tanto de Ademir quanto dos que o cercavam, agora nos dá acesso.
Difícil, antes de mais nada, nomeá-lo, e o epíteto Divino, que sempre o acompanhou, talvez seja resultado antes do pasmo e da dificuldade de caracterização do que da hipérbole. Sem ser um chutador excepcional, como Rivelino, nem um lançador fora-de-série, como Gérson, nem um cabeceador como Leivinha, nem um roubador de bolas, como Dudu, era um pouco tudo isto, sim, um jogador completo, mas também, de alguma forma, algo mais intenso do que isso.
Feitio único
O que impressionava em Ademir era o modo próprio como fazia as coisas, um feitio estranho e sem precedentes que passaria por modesto se não fosse absolutamente único (entre os jogadores em atividade, talvez Zidane seja o que mais se assemelhe a ele ).
Pois havia em sua enorme eficácia uma, como dizer, resistência ao ato, que parecia camuflar-se em seus efeitos. Percebia-se sua presença como uma sombra imóvel espalhando-se por todo o campo, sem que valesse a pena depois singularizá-la em jogadas.
A duração era sua matéria e seu alimento, e evitava rompê-la com gestos e rompantes. Distribuía seu jogo numa monotonia tensa, subterrânea, para além da urgência do placar (segundo Dudu, jogava sempre igual, qualquer que fosse ele), desconfiada dos grandes esforços, em contato com uma matéria mais complexa e supra-individual: o tempo.
Pois é da aceitação do tempo, de uma estranha comunhão com ele, que Ademir tirava sua força. É o tempo o "líquido se infiltrando/ no adversário, grosso, de dentro/ impondo-lhe o que ele deseja/ mandando nele, apodrecendo-o" do poema de João Cabral, dedicado a ele.
Se de tantos jogadores é comum dizer que "criam espaço", de Ademir seria preciso dizer que criava tempo. Criar não no sentido de adicionar, mas de fazer durar, esticando-o. Uma de suas jogadas mais lembradas é um passe perfeito, com o pé debaixo da bola, como uma colher, fazendo-a subir sem atrito, quase sem chute, sobre a zaga, até o atacante -um passe lento, eficaz, surpreendente, mas que pareceria longo demais para dar certo.
Também seu corpo não parecia exatamente mover-se, mas flutuar, apegado à inércia e à posição anterior (seu próprio batimento cardíaco era incrivelmente baixo). A aceleração era o elemento verdadeiramente excluído de seu futebol, vindo daí talvez a falsa impressão de lentidão -na verdade, Ademir agia como a tartaruga do paradoxo de Zenão: confiante de estar sempre à frente do velocista, independentemente dos esforços dele, seguia seu ritmo com segurança.
Se Pelé desenhava seus gestos, dribles e jogadas com uma precisão de cinema mudo (basta lembrar, por exemplo, a cabeçada antológica contra Banks, em 70, a famosa paradinha na hora do pênalti, o soco no ar na comemoração dos gols ou o chapéu contra a França, em 58), Ademir parecia apagá-los minuciosamente na duração e no contínuo, disfarçando o excepcional no que parecia comum e anônimo.
Daí que seja, talvez, um pouco difícil lembrar dele. Ademir fez parte daquelas duas gerações que, além de ganhar três Copas, assistiram à passagem da narração do jogo pelo rádio à transmissão televisiva, gerações híbridas entre o tempo mítico do relato oral (ao qual pertence exclusivamente o talento de um Leônidas da Silva ou mesmo do pai de Ademir, Domingos da Guia) e o realismo algo desencantado, imagético, da televisão, que teve seu início em 56, mas se firmou definitivamente a partir 70.
Acho que mais do que o estilo de jogo, o número de faltas ou o preparo físico, o que realmente mudou no futebol foi a forma de registrá-lo. O próprio da transmissão radiofônica é a hipérbole, a maximização da emoção por meio dos achados de cada locutor (me lembro bem de assistir aos domingos, ainda pequeno, com o coração aos trancos, aos jogos do Santos pelo rádio e depois revê-los na TV Cultura, a partir das 22:00 horas, espantado com a lentidão e a pasmaceira do jogo); é a aceleração até o paroxismo no ritmo das palavras, criando uma suspensão insuportável que o longo e monocórdico grito de gol, comum a todos os locutores, tem a função de aliviar. Mas como narrar Ademir, se tudo nele é constância e metrônomo? Como hiperbolizar sua presença transparente, tão difícil de detalhar, segura e determinada como o movimento de uma maré?
Se, de um lado, seria difícil imaginar Nelson Rodrigues (que quase não enxergava, mas nunca tirava o ouvido do rádio), o maior e mais exagerado cronista da era do rádio, escrevendo longamente sobre Ademir, a televisão, por outro, parece demasiado focada para compreender seu futebol, isolando e fetichizando com closes e repetições cada falta, gol ou jogada, independentemente do todo do jogo, onde Ademir parecia sempre estar (além do que, poucas coisas seriam mais tautológicas do que repetir uma jogada de Ademir em câmera lenta). Espremido assim entre as duas eras -e talvez seja esta a base do mito Pelé: ter grandeza suficiente para pertencer a ambas-, Ademir no fundo não se identificava com nenhuma. Seu tempo, mais uma vez, era longo demais para as urgências do presente.
Daí que tenha sido acompanhado, em toda a sua carreira, pelo insucesso na seleção brasileira. Essa curiosa discrepância entre a unanimidade no time e a discórdia na seleção (eram duas as acusações: lentidão e ausência de lançamentos longos) diz muito sobre Ademir e, também, sobre um aspecto que se alterou completamente em nosso futebol em dias ainda muito recentes: a história e o ritmo de formação dos clubes.
Sim, porque até a geração de Zico (até o final dos anos 80), se assistia à longa maturação de um time, num ritmo de vegetal crescendo.
As duas academias
Raramente acertava-se do dia para a noite. Ademir, por exemplo, foi o eixo das duas academias palmeirenses, uma em meados da década de 60 e outra no início dos anos 70, que demoraram alguns anos para firmar-se. A cor e o sabor de cada time imprimia-se a seus jogadores, que tinham dificuldade em livrar-se disso. A seleção, ao contrário, parecia dar-se na fagulha e no instante. O improviso, ali, era reiterado e necessário.
Adaptar-se à seleção era, justamente, adaptar-se a esta urgência -basta lembrar que Garrincha e Pelé entraram no decorrer da Copa de 58, ou que Tostão e Pelé só foram jogar juntos nas eliminatórias da Copa de 70. Ora, entre a épica da seleção e o enraizamento profundo, menos heróico e mais anônimo, dos clubes, Ademir com certeza pertencia aos clubes.
Além disso, era sempre o dono do seu time. Seu desempenho fundamentava-se numa generalidade, o ritmo do jogo, que dificilmente poderia ser compartilhada. Por isto, olhando retrospectivamente, é aceitável não vê-lo na seleção de 70, formada quase toda por jogadores absolutamente centrados, que acabaram formando um time com diversos eixos de regência -mas parece irritante sua exclusão em 74. Pois escolher Rivelino, esse talento tão enorme quanto volúvel, que fracassou na tarefa de levar o Corinthians a um único título, para essa função, deixando Ademir de fora, é resultado de um duplo erro de avaliação. A substituição de Ademir no segundo tempo contra a Polônia, em seu único jogo numa Copa do Mundo (naquele momento, eu me lembro, era o melhor em campo), parece apenas coroar a condição de algum modo estrangeira que o acompanhou por toda a vida.
O auge do futebol brasileiro (e talvez do próprio esporte) parece ter-se dado entre o final da década de 50 e meados da de 70. Sua principal característica foi provavelmente o fantástico volume de jogo, que caracterizava o comportamento tanto de nossa seleção quanto de nossos times (além, é claro, de nossa extrema facilidade para marcar gols). Raramente jogávamos no contra-ataque; visávamos sempre a posse da bola, que fazíamos durar; impúnhamos com naturalidade nosso ritmo ao adversário.
Ademir, durante todo esse período (começou no início dos anos 60) partilhou a ambígua condição de ser um dos frutos mais refinados dessa característica genérica (afinal, era o mandatário do ritmo do jogo, cujo compasso, um pouco como o canto de João Gilberto, alongava ou comprimia) e seu filho renegado.
Hoje, parece que tudo o que perdemos -nossa cadência, a capacidade de reter a bola, nossa estranha e ambígua lerdeza- estava desde sempre em Ademir, guardado e sublimado. Mas não seria sua relativa inadequação a uma época de tantas glórias uma espécie de fundo de garantia, para além de tudo o que conquistamos e gastamos? E não seria essa reserva um sentido possível para o divino?
(Folha de S. Paulo, 13.10.01)
O texto acima resenha a obra "Divino - A Vida e a Arte de Ademir da Guia", de Cleber Mazziero de Souza Ed. Gryphus, 218 págs.
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