A cantilena midiática em torno da volta de Ronaldo Nazário aos gramados traz à tona
o fenômeno (com o perdão do trocadilho) de intervenção dos meios de comunicação
sobre a realidade, da notícia que transforma o fato: Parte da mídia
superdimensiona um acontecimento, aplica-lhe um espessante jornalístico
e torna o caso maior do que realmente é. Emissão dedinheiro sem lastro, dar curso forçado a moeda podre.
Em linguagem chula, mas direta, para quem assistiu a cobertura da volta de Ronaldo
contra o Itumbiára, pela Copa do Brasil, chama-se aquilo de imprensa marron.
A volta de Ronaldo é notícia, sem dúvida.
Mas a imprensa, predominantemente a televisão,
enveredou-se, salvo exceções honrosas,
pelo caminho de não informar, não contextualizar.
Os meios de comunicação conferem à realidade brilhos que ela não tem, maquiam,
espetacularizam o fato, não dizem, fazem loas.
Reconhece-se, em análise sobre o trabalho de Ronaldo dentro de campo,
nos jogos contra Palmeiras e S. Caetano, que sua atuação
foi impecável, digna de um especialista.
Mesmo fora de forma, o craque acertou a meta
em todos os sete chutes que deu, marcou dois gols,
mostrou raro senso de colocação e deu mostras
que pode fugir das suas características originais - ataques velozes em direção
ao gol adversário, com a bola amarrada aos pés - sem perder efetividade e resultado.
Ele sabe tudo.
O texto que vamos mostrar, de José Geraldo Couto,
traz as coisas aos trilhos e examina objetivamente a volta do Fenômeno.
Um primor:
"Ronaldo na corda bamba"
José Geraldo Couto
A grande façanha do craque é equilibraras suas duas metades, a do astromidiático e a do jogador de futebol
HÁ QUEM goste de futebol e há quem goste de celebridades. Ronaldo se desdobra em dois para atender a esses dois públicos. Os que buscam avidamente o Ronaldo superstar não têm do que se queixar. Há uma overdose dele na mídia, em especial na Rede Globo, que parece querer espremer ao máximo o sumo que o astro pode lhe dar, em termos de audiência e ostentação de poder. "Globo Esporte", "Altas Horas", "Caldeirão do Huck", em toda parte está o gorducho simpático, que só nega (sonega?) o sorriso aos repórteres de outros canais.
Mas quem vibra com o Ronaldo craque de bola também está satisfeito. Em campo ele não só vem jogando bem como tem sido decisivo para o time. Mesmo distante de sua forma ideal, está bem acima da média do futebol praticado hoje por aqui.
Como todos os amantes do jogo da bola, também me empolguei e me emocionei com a volta por cima de Ronaldo. Os muito céticos dirão que as zagas do Palmeiras e do São Caetano deram moleza para o artilheiro. Um leitor ligeiramente paranoico chegou a sugerir que o gol em Presidente Prudente tinha sido resultado de uma armação entre os clubes, a arbitragem, a TV, os patrocinadores. Em contraste com eles, há os eufóricos. Na transmissão da Bandeirantes do clássico contra o Palmeiras, o locutor Luciano do Valle chegou a exclamar, após o gol corintiano: "Deus existe!" E opinou que o jogador "está muito perto de ser o Fenômeno de novo". Ronaldo, por enquanto, equilibra- -se entre esses extremos, dobrando os céticos e contendo a exaltação dos eufóricos, tentando conciliar a badalação mundana, midiática, com as exigências das preparações física e técnica.
Em seu conto "A Vida Privada", de 1892, o norte-americano Henry James concebeu um escritor dividido em dois: enquanto um deles se encerra no escritório para trabalhar em sua literatura, uma espécie de clone seu comparece às festas, eventos e compromissos sociais. Só assim ele não se dispersa e pode se dedicar integralmente ao seu ofício.
Na impossibilidade de fazer o mesmo, Ronaldo tem que ser um artista da corda bamba. Se ele só se concentrar em jogar futebol, rejeitando os convites e limitando as aparições, esvaziará sua imagem pública, desagradará ao império da mídia, aos patrocinadores e à sua própria vaidade. Se, ao contrário, deixar que essa roda-viva o arraste, o craque perderá o foco e seu futebol tenderá a cair. Pelo bem dele, do Corinthians e do futebol, torço para que Ronaldo consiga manter em equilíbrio suas duas metades. Depois de repetir durante anos a frase do poeta Hoelderlin, segundo a qual "o homem é um deus quando sonha e um mendigo quando pensa", hoje penso que é preciso equilibrar a metade que sonha e a metade que pensa.
Sonhar apenas, sem pensar, como se vivêssemos numa ilha da fantasia, pode levar ao mais completo delírio, se não à barbárie. Mas só pensar, abrindo mão do sonho, acaba nos tornando um bando de burocratas, de "burgueses pouco a pouco", para usar a expressão de Mário de Andrade. Cabe, portanto, apostar em Ronaldo, mas de olho na balança e na tabela de classificação.
FOLHA DE S. PAULO, 14.03.09
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