Ronaldomania: mais um artigo que faz referência à má prática da utilização de espessantes jornalísticos na cobertura do retorno de Ronaldo aos gramados.
A espetacularização e mitificação da "volta", e a superexposição a que se submete o atleta exibem a lógica do mercado: extrair da laranja o máximo do seu sumo, e daqueles que as plantam, colhem e produzem, o quanto possível do seu suor.
O texto é do cineasta e articulista de "O Estado de São Paulo",
Ugo Giorgetti, diretor do filme
Futebol com talento e cabeça
Ugo Giorgetti
PROCURO VER O o futebol de um ângulo que raramente privilegia o jogo em si. Frequentemente escrevo sobre coisas que não se passam dentro das quatro linhas, episódios que se verificam, digamos, na periferia do jogo, mas que na realidade muitas vezes são mais importantes do que o jogo jogado.
Se fosse escrever sobre Ronaldo, minha tendência seria examinar como se manifesta, como é seu relacionamento com a imprensa, particularmente com a TV Globo, como se conduz, enfim. Teria de assinalar que não aguento mais as câmeras focalizando Ronaldo no banco de reservas, como se ele, sentado e parado, tivesse algum interesse para alguém. Teria de dizer que é difícil de engolir toda essa xaropada de redenção e volta por cima, digna da festa do Oscar, como se Ronaldo fosse nosso Mickey Rourke.
Em suma, teria de manifestar meu desgosto com todo esse circo de emoções baratas que cerca sua vida.
Mas não quero falar disso. Hoje quero falar, para variar, do jogo no campo, esse jogo que me acostume ia ver desde criança e que, creio,conheço bem, como qualquer torcedor que viu muito jogo e muito jogador. E falar de futebol no campo é o mesmo que falar de… Ronaldo.
É inevitável, é impossível, pelo menos para mim, evitar esse jogador. Para isso evoco a partida contra o Palmeiras e que deflagrou a avalanche de Ronaldo que nos atinge. Tem razão Antero Greco, na sua coluna de sexta feira, quando escreve que palmeirense que diz que vibrou com o gol de Ronaldo mente mais do que Pinocchio.
Concordo inteiramente. Mas houve uma jogada cujo desenho fez com que eu, que assistia ao jogo com a mesma apreensão do Antero, quase levantasse da cadeira para aplaudir. Uma jogada aparentemente simples: Ronaldo recebe a bola um pouco de costas para o marcador, aliás de 23anos,vigoroso e no peso. Dá um pequeno toque inesperado para a esquerda, o que já deixa o zagueiro um pouco para trás, inicia uma corrida desengonçada,atrapalhada pelos quilos. Mas, protegendo sempre a bola, chega perto da linha de fundo. Nessa posição, a maioria esmagadora dos jogadores que nos resta ver faria duas coisas igualmente lastimáveis: ou daria um pontapé na bola supostamente em direção do gol, que na melhor das hipóteses teria direção exata do corpo do goleiro, ou então, de cabeça baixa, daria o mesmo pontapé na bola para o interior da área esperando que ela batesse em alguém ou em alguma coisa, frequentemente atingindo as costas de um companheiro.
Ronaldo fez o que craque faz. No momento absolutamente preciso, segundos antes de ser alcançado pelo zagueiro esbaforido, deu um tapa na bola, um impulso ligeiro, com pouca força, quase com desdém, mas matematicamente o necessário para a bola executar a caprichosa curva que a fez cair, como se colocada com a mão, na cabeça do companheiro. Tudo em segundos, de pé esquerdo, com todo aquele peso, arfando, de boca aberta.
Executado como foi o lance parece tão fácil! Mas eu sei que não é. E é por eles que vejo jogos, para ver esses lances que não redundam em gol, e se perdem. Que infelizmente acabam esquecidos no meio das estatísticas. Esse lance me lembrou de Coutinho, de Ademar Pantera, Escurinho, Tostão e dr. Sócrates – Craques que não eram atletas. Eram apenas craques. Ronaldo está a nos lembrar que futebol se joga com talento e com a cabeça. Quando não há nada disso se joga com o físico.
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