"NUM DIA QUALQUER DE 1957, vi numa gazeta esportiva a foto de um garoto que vinha se destacando no Santos. Em 1958 esse garoto se chamava Pelé e fazia parte da seleção brasileira, e a seleção brasileira, num domingo infinito que parece a própria final dos tempos, era campeã do mundo. Quando Pelé volta para a Vila Belmiro - o pequeno estádio do Santos -, já se podia ouvir pelo rádio, no momento em que a bola chegava a ele, um alarido diferente na platéia, um clamor excitado e ansioso, uma marca de sagração. Um acontecimento dessa potência nunca se dá sozinho, não só porque um time de futebol tem onze jogadores, como se sabe, mas porque um poder de imantação parece arrastar, por acaso e necessidade, o que está à sua volta. Entre outros, Pelé estava ao lado de craques: do volante Zito, do centroavante Pagão, do ponta-esquerda vicentino Pepe. E a eles se somaram o centroavante Coutinho (cujas tabelinhas com Pelé faziam dele um alter ego, uma soma e um plus, como se não bastasse, e deles uma dupla de heróis geminados, à maneira de certas narrativas míticas), Calvet, Dorval e Mengálvio, vindos do futebol gaúcho, e ainda o goleiro Gilmar, o central Mauro, além de Lima, o "coringa". Garantiu-se uma sobrevida desse período de glórias com a vinda do lateral direito Carlos Alberto, com as substituições posteriores de Laércio por Gilmar e deste por Cejas, de Mauro por Ramos Delgado, de Calvet por Orlando, de Pepe por Edu, de Zito por Clodoaldo, de Coutinho por Toninho Guerreiro, de Dorval por Manoel Maria.
(...)
A pequena Vila Belmiro, com sua calma e arejada atmosfera de província, que passei a freqüentar quase semanalmente, continha uma parte considerável da expressão máxima que o futebol já conheceu em qualquer tempo (como se pode dizer de maneira insuspeita, nesse caso raríssimo, sem medo de estar cometendo algum ato de prepotência).
O que se passou ali tem pouco registro em vídeo. Pelé é um ser de transição entre o futebol do rádio e o futebol da televisão, cujos teipes contribuíram para torná-Io o símbolo de alcance planetário que ele é. Mas, no que se tem para ver, falta a massa do dia-a-dia do futebol da Vila. Ali, aconteceu de tudo o que se pode e o que não se pode imaginar em matéria de criação futebolística. Como um fabuloso time que pôde jogar junto muito tempo, o que não acontece mais, a combinação dos talentos e da genialidade se decantou e quintessenciou fantasticamente. Um ou outro jogador mais limitado, como os laterais Dalmo ou Geraldino, resplandeciam como craques no corpo daquele time, induzidos por um ritmo de jogo que tanto podia arrebentar em onda branca quanto passear pelo campo como um tapete de espuma suave e implacável. A alvura do uniforme, por sinal, sem a poluição da logomarca do patrocinador, que não existia, em contraste com as peles negras de sua linha atacante (descontado Pepe, a ovelha branca), e só se deixando marcar pelo distintivo alvinegro no coração, era um ícone e um ideograma de alguma fórmula alquímica que tivesse sido alcançada ali."
(Trecho do livro VENENO REMÉDIO, de Miguel Wisnik - Veja a capa e outras informações na coluna ao lado. A gravura que ilustra o texto traz a Vila Belmiro no olhar do artista plástico Paulo Consentino. )
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