"- Valeu a pena ter atravessado o oceano,
só para sofrer esse gol."
DOS GOLS dessa época [final da década de 50, anos 60] que se perderam da memória coletiva, escolho um que não é de Pelé, mas de Coutinho, e que não aconteceu na Vila Belmiro, mas no Maracanã, numa noite de 1962, na primeira partida da decisão mundial interclubes entre Santos e Benfica. A bola foi lançada pelo alto, vinda da intermediária pelo lado direito, caindo sobre o bico esquerdo da área pequena, onde estava Coutinho. Ele matou de efeito sem deixá-Ia cair no chão, aproveitando tanto o impulso natural da bola quanto o seu desenho em curva para dar um chapéu de fora para dentro num primeiro zagueiro, e, em seguida, um outro chapéu simétrico num segundo zagueiro, antes de concluir, sem que a bola tocasse o chão. Vi esse gol, de uma perfeição rara, uma única vez - ele é de antes da existência do replay. A TV em preto-e-branco dobrava hipnoticamente o branco do uniforme alvinegro, redobrado ainda pelo contraponto vishal da pele negra com a bola branca (que só se usava, então, para jogos noturnos). Tudo num flash - àquela época espocavam flashes, confundidos na luz da tela e na da memória com o próprio gol fulminante em tempo-espaço mínimo. Mais do que produzir o efeito de "uma pintura", ele me lembra aquela técnica de desenho japonês em preto-e-branco; o sumiê, em que o artista arremata a obra com uma única pincelada. Não conheço ninguém mais que se lembre desse gol (um colega de ginásio me disse na época que o tinha visto no cinema, mas nunca o reencontrei nas raras e extasiantes retrospectivas do Canal 100). O filme Pelé eterno não o mostra, reduzindo-o literalmente a uma mutiladora fração de segundo. Li num jornal, dois dias depois do jogo, que, ao embarcar de volta para Portugal, um dirigente do Benfica declarou sobre o gol, numa autêntica chave de ouro camoniana, que valera a pena atravessar o oceano, só para sofrê-lo.
(Trecho do livro "VENENO REMÉDIO: O FUTEBOL E O BRASIL" , de Miguel Wisnik - pág. . Veja a capa e outras informações na coluna ao lado).
ILUSTRAÇÃO: Mengálvio, Pelé, Coutinho e Pepe, em confraternização, no ano de 2007.
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